domingo, 11 de dezembro de 2011

A dimensão da raça nas políticas públicas

Embora o texto que posto abaixo, e recomendo a leitura, não seja tão atual, traz um compilado muito pertinente as temáticas do Blog: “POBREZA, GÊNERO E RAÇA/ETNIA NOS CONTEXTOS URBANO E RURAL - Perspectivas de gênero e raça/etnia na saúde pública”, bem como as temáticas do Módulo 3 – Políticas públicas e raça do curso de GPP-GER e as abordagens nas respectivas unidades:

ü Unidade 1 – A construção histórica da ideia de raça
ü Unidade 2 – O percurso do conceito de raça no campo de relações raciais no Brasil
ü Unidade 3 – Desigualdades raciais e realização socioeconômica: uma análise das mudanças recentes
ü Unidade 4 - Movimento Negro e Movimento de Mulheres Negras: uma Agenda Contra o Racismo

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NOTA TÉCNICA

PERSPECTIVA DE GÊNERO E RAÇA NAS POLÍTICAS PÚBLICAS*
Laís Abramo**

* Apresentação feita no Seminário Internacional América do Sul, África, Brasil: acordos e compromissos para a promoção da igualdade racial e combate a todas as formas de discriminação, Brasilia, 22-24 de março de 2004.

** Especialista Regional da OIT em Gênero e Trabalho.



O tema deste ensaio é a dimensão de raça nas políticas públicas. A primeira pergunta que deve ser feita é: Por que é importante falar de gênero e raça quando se fala de políticas públicas? Ou, em uma linguagem mais técnica, por que é importante introduzir, fortalecer e transversalizar a dimensão de raça nas políticas públicas?

Em primeiro lugar porque, no Brasil, as desigualdades e a discriminação de gênero e raça são problemas que dizem respeito à maioria da população. No caso brasileiro, quando nos referimos a gênero e raça não estamos falando de grupos específicos da população, ou de minorias, mas, sim, das amplas maiorias da sociedade brasileira. Isso não significa que a discriminação contra qualquer minoria possa ser justificada, mas que, no Brasil, esse problema claramente se refere à maioria da população. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2001, as mulheres correspondem a 42% da População Economicamente Ativa (PEA), e os negros de ambos os sexos a 44,5%. A soma de mulheres (brancas e negras) e homens negros corresponde a 55 milhões de pessoas, que representam quase 70% da PEA brasileira. Por sua vez, as mulheres negras, que representam um conjunto bastante especial nesse grupo, correspondem a 14 milhões de pessoas — quase 20% da PEA brasileira.

Em segundo lugar, porque, em qualquer indicador social considerado — educação, emprego, trabalho, moradia etc — existe uma desvantagem sistemática das mulheres em relação aos homens, e do conjunto de negros de ambos os sexos em relação aos brancos. Essa desvantagem é especialmente marcada no caso das mulheres negras.

O segundo tema importante a ser discutido é como essas duas questões — gênero e raça — podem e devem ser relacionadas. Esses dois temas têm estatutos diferenciados. No caso do Brasil existem, inclusive, movimentos sociais organizados — e diferenciados — em torno dessas duas questões: os direitos da mulher e o feminismo, e os direitos dos negros e o combate ao racismo. Trabalhar conjuntamente essas duas questões não é fácil, não é simples. Pelo contrário, é um grande desafio.

No Brasil, estamos vivendo atualmente um momento propício para trabalhar essa questão, a partir da criação, pelo Governo do presidente Lula, de duas secretarias especiais vinculadas à Presidência da República. Uma delas encarregada das políticas para as mulheres e a outra encarregada das políticas de promoção da igualdade racial. Essas duas secretarias, e as suas respectivas ministras, têm muita consciência de que é necessário trabalhar em conjunto essas duas dimensões, e isso é muito importante.

As desigualdades e as discriminações de gênero e raça são duas formas fundamentais de discriminação que cruzam a sociedade e o mundo do trabalho no Brasil. São dois tipos de discriminação que não apenas se superpõem, mas se intercruzam e se potencializam. A situação da mulher negra evidencia essa dupla discriminação.

Examinando os indicadores do mercado de trabalho, o que observamos é que em alguns aspectos a discriminação de gênero é mais acentuada que a de raça, e em outros ocorre o contrário. Não se trata aqui de discutir qual desses dois tipos de discriminação é o pior.

Ambos são intoleráveis e têm de ser combatidos. No caso da mulher negra, uma forma de discriminação potencializa a outra.

Outro tema abordado nessa exposição é a relação entre a discriminação (de gênero e raça), a pobreza e a exclusão social. Muitas vezes essa discussão é feita separadamente: quem discute a questão da discriminação não discute necessariamente a questão da pobreza, e quem discute a questão da pobreza não está levando na devida conta as dimensões de gênero e raça. Existe, entretanto, uma relação muito forte entre esses dois problemas: as diversas formas de discriminação estão fortemente associadas aos fenômenos de exclusão social que dão origem à pobreza e são responsáveis pela superposição de diversos tipos de vulnerabilidade e pela criação de poderosas barreiras adicionais para que as pessoas e os grupos discriminados possam superar a pobreza e a exclusão social.

A pobreza é heterogênea. Isso pode parecer óbvio, mas não é porque a maioria das análises e diagnósticos sobre a questão da pobreza, os indicadores em geral utilizados para medi-la, assim como as políticas públicas desenvolvidas para tentar combatê-la não consideram devidamente nem a dimensão de gênero, nem a de raça desses fenômenos.

A pobreza não é neutra. A pobreza tem sexo, tem cor, tem endereço. Isso significa que os fatores ligados à condição da família, ao ciclo de vida, ao sexo, à idade, à raça e à etnia, determinam formas diferenciadas de vivenciar a pobreza, e que determinados grupos da população são mais vulneráveis e têm uma dificuldade maior de superá-la. Há alguns processos e características que são comuns na pobreza de homens e mulheres, negros e brancos, mas existem outros que são diferentes e geram maiores dificuldades e desvantagens adicionais.

O sexo e a raça são os fatores que mais fortemente condicionam a forma pela qual as pessoas e suas famílias vivenciam a pobreza. No Brasil, os negros estão sobre-representados entre os pobres. Eles equivalem a 45,5% do total da população e a 69% do total das pessoas em situação de pobreza. Na mensuração da pobreza, é mais fácil ter dados desagregados por cor que por sexo, devido aos indicadores que freqüentemente são utilizados para medir a pobreza, que tomam em conta o rendimento familiar (a família é a unidade de análise, e as diferenças que existem no seu interior, entre elas a de sexo, não são devidamente consideradas).

DETERMINANTES DE GÊNERO E RAÇA DA SITUAÇÃO DA POBREZA DE NEGROS E MULHERES

A raça e o sexo das pessoas determinam a sua maior ou menor vulnerabilidade diante da pobreza e uma maior ou menor dificuldade de superação dessa situação. Quais são esses determinantes? Quatro deles merecem destaque:

Primeiro determinante: maiores dificuldades de inserção de negros e mulheres no mercado de trabalho
Para a Organização Internacional do Trabalho (OIT) a forma fundamental de superação da pobreza é o trabalho. Não um trabalho qualquer, mas um trabalho que a OIT define como trabalho decente, ou seja, capaz de garantir condições de vida minimamente dignas para as pessoas, e se o trabalho é a via fundamental de superação da pobreza e da exclusão social, é necessário analisar quais as condições que têm os negros e as mulheres para uma inserção decente (de boa qualidade) no mercado de trabalho. Todos os dados indicam que as mulheres e os negros têm mais dificuldades de se inserir no mercado de trabalho e, em especial, de obter um emprego de qualidade.

As principais dificuldades de cada um desses grupos não são necessariamente as mesmas. No caso das mulheres, um fator muito importante são as restrições impostas pelas responsabilidades reprodutivas, ou seja, toda a carga das tarefas relativas ao cuidado da casa, das crianças, dos mais velhos, que continua sendo assumida principalmente — quando não exclusivamente — pelas mulheres. Esse é um trabalho que consome um número importante de horas por dia (especialmente entre os setores mais pobres) e que não tem um valor econômico reconhecido pelo mercado. No caso dos negros, um elemento importante é a escolaridade. Apesar de aumentos importantes verificados na última década nos níveis de escolaridade do conjunto da população brasileira, ainda persiste um diferencial muito grande entre negros e brancos nesse aspecto. Esse diferencial se manteve igual ao longo de todo o século XX. Essa é uma estabilidade muito perversa.

Também afetam negativamente a inserção de mulheres e de negros no mercado de trabalho a falta de qualificação profissional específica e a ausência de redes de informação, de contatos, fatores muito importantes para que as pessoas possam encontrar um trabalho.

No caso das mulheres, existem também fatores culturais que não incentivam — ou desincentivam — o trabalho feminino, dentre eles a velha idéia de que cabe ao homem o papel de provedor da família e à mulher as funções de cuidado. Essa idéia continua tendo uma forte presença e capacidade de propagação, apesar do fato que, no Brasil, 27% das famílias são chefiadas por mulheres, ou seja, em quase 30% das famílias brasileiras as mulheres são as provedoras principais — ou exclusivas. Apesar disso, continua sendo muito forte a idéia de que o papel da mulher é “cuidar” da família e da esfera reprodutiva e, mesmo quando ela trabalha, seu trabalho é secundário ou complementar ao do marido.

Segundo determinante: a desigual valorização econômica e social do trabalho tanto de negros quanto de mulheres

O trabalho tanto de negros como de mulheres é menos valorizado social e economicamente. Isso está na base dos preconceitos que afetam a sua inserção no mercado de trabalho, como a suposta “falta de competência” para determinados tipos de trabalho, ou uma delimitação rígida do que seriam trabalhos próprios para mulheres e próprios para homens, próprios para negros e próprios para brancos. Na verdade existem muitos preconceitos, muitos estereótipos diferentes, mas todos eles têm um elemento comum: a desqualificação das mulheres em relação aos homens e dos negros em relação aos brancos. As formas pelas quais negros e mulheres são desqualificados e desvalorizados no mercado de trabalho não são necessariamente as mesmas, mas esse fenômeno ocorre com ambos os grupos da população e está na base da persistência e reprodução de uma segmentação ocupacional que os desfavorece.
Mesmo diante do fato de que as mulheres já têm um nível médio de escolaridade superior ao dos homens no mercado de trabalho, elas costumam se concentrar em certas ocupações e profissões que são desvalorizadas social e economicamente, e que aparecem quase como uma extensão das “funções de cuidado” exercidas no âmbito doméstico e familiar (empregadas domésticas, enfermeiras, educadoras de ensino básico etc.). Isso explica uma parte importante da maior dificuldade de inserção das mulheres no mercado de trabalho e os diferenciais de rendimento, oportunidades de ascensão e promoção que ainda permanecem. O mesmo ocorre no caso dos negros.

Terceiro determinante: acesso desigual aos recursos produtivos

Em uma situação em que emprego assalariado e formal responde cada vez mais a uma menor percentagem dos postos de trabalho existentes, são cruciais as condições de acesso à terra, à tecnologia, ao crédito que possibilitem alguma alternativa de geração de trabalho e renda. Nesse aspecto também a situação de mulheres e negros é muito menos favorável.

Quarto determinante: desigualdade de oportunidades para participar dos processo de tomada de decisões

Essa desigualdade incide na não-inclusão dos interesses das mulheres e dos negros nas agendas de políticas públicas. Em razão disso, as políticas de combate à pobreza, de geração de emprego, ou de qualquer outra área das políticas públicas (educação, saúde, habitação etc.) não refletem adequadamente as necessidades e direitos de mulheres e negros, e as políticas aparentemente “neutras” em relação ao gênero e à raça tendem a reproduzir as desigualdades existentes entre mulheres e homens, negros e brancos.

 
DESAFIOS PARA AS POLÍTICAS PÚBLICAS

 
Nessa parte final quatro desafios para as políticas públicas voltadas ao combate à pobreza e à geração de emprego serão apresentados, com o objetivo de incorporar adequadamente as dimensões de gênero e raça.

O primeiro deles é incorporar uma dimensão de gênero e raça nos métodos de medição da pobreza e nas análises sobre a pobreza, a fim de visibilizar as características próprias da pobreza das mulheres e dos negros. Se a pobreza é heterogênea, se existe uma situação diferenciada e desigual em termos de gênero e raça na vivência da pobreza e dos processos de exclusão social, essa realidade deve refletir-se nos indicadores através dos quais esses fenômenos são mensurados, assim como nas análises e diagnósticos feitos sobre pobreza, problemas de emprego, educação, saúde, habitação etc. Outra vez, isso vale para qualquer área das políticas públicas.
Para elaborar políticas mais eficazes de combate à pobreza é fundamental compreender as causas a ela associadas, identificar os grupos mais vulneráveis e gerar respostas adequadas.
É fundamental, ainda, que as pessoas em situação de pobreza deixem de ser vistas apenas como beneficiárias de programas sociais, e passem a ser vistas como cidadãs e cidadãos portadores de direitos.

O segundo desafio é justamente incorporar os problemas das mulheres e dos negros na agenda pública. Para isso, é muito importante estabelecer canais e mecanismos de diálogo com diferentes atores. Esses problemas são de uma magnitude tal que a sua solução supõe o concurso de diferentes atores e a criação de espaços de concertação social. Também é importante identificar adequadamente as melhores opções institucionais para promover a transversalização das dimensões de gênero e raça nas políticas públicas, que podem ser diferentes segundo os vários contextos em que se atua.

O terceiro desafio é gerar novas respostas ante os problemas das mulheres e dos negros.

Rever o impacto diferenciado em homens e mulheres, brancos e negros dos programas de emprego e combate à pobreza e incorporar uma dimensão de gênero e raça nos processos de planejamento, implementação, alocação de recursos, monitoramento e avaliação de cada programa ou política. Se não existirem mecanismos ou indicadores que possam medir os efeitos dessas políticas, e se esses indicadores são sensíveis ao gênero e à raça, nunca poderemos saber se esses programas são eficientes ou não, se contribuem ou não para os seus objetivos, assim como para a superação das desigualdades de gênero e raça.

O quarto desafio é fortalecer as capacidades institucionais dos gestores públicos e demais atores sociais para desenvolverem propostas de política e mecanismos de implementação, monitoramento e avaliação capazes de promover a igualdade de gênero e raça como um aspecto fundamental das políticas públicas. Quando falamos de políticas públicas nos referimos a gestores, a formuladores de políticas, a pessoas responsáveis pela implementação dessas políticas, seu monitoramento e avaliação. Estamos falando do governo, dos funcionários públicos e também das organizações da sociedade civil que estão em constante diálogo com esses gestores públicos. Um fator central, portanto, para o êxito dessas políticas, para aumentar sua capacidade de contribuir para a superação das desigualdades de gênero e raça é fortalecer as capacidades institucionais dos atores que são por elas responsáveis para que sejam capazes de executar tudo o que estamos propondo aqui. Não basta ter sensibilidade para a questão de gênero, sensibilidade para a questão de raça, isso é importante, mas não suficiente. Fundamental é saber como traduzir essa sensibilidade em programas e políticas concretas, em ferramentas concretas, e isso exige um grande esforço de formação e capacitação dos gestores públicos e dos demais atores sociais e a criação de espaços e mecanismos de diálogo social e de concertação em torno ao tema. As organizações sindicais, de empregadores, de mulheres e negros têm de estar presentes nessa discussão. Para isso elas também têm de se qualificar, para saber traduzir todas essas idéias e demandas em políticas e ações concretas.

FONTE: IPEA mercado de trabalho | 25 | nov 2004 21. Disponível em <http://www.ipea.gov.br/pub/bcmt/mt_25e.pdf> Acesso em 10 de dezembro de 2011.

POSTADO POR: Teresa Cristina


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